sábado, maio 16, 2009

Uma fábula revisitada...

Era uma vez, na manhã do princípio de uma Primavera quente, uma cigarra, uma formiga jovem e também a formiga mãe. O sol subia no azul do céu. Pouco a pouco, estendia-se por toda a verdura do prado. Chegou ao arbusto rasteiro em que se achava a cigarra, aquecendo-lhe o corpo pequeno. A cigarra recebeu-o, contente, movendo-se rapidamente de um lado para outro lado do pequeno ramo que a sustinha. Esticou os membros, uma e outra vez, procurou a melhor posição e deu largas à sua alegria, cantando e voltando a cantar.

Muito próximo, dormia a jovem formiga, na gruta que a protegera e à família do frio e das chuvas do último Inverno. Acordada do seu longo sono e desperta para o bom tempo da Primavera pelo canto da vizinha cigarra, a jovem formiga levantou-se e logo disse de si para si:

- Que bom, a vizinha cigarra já canta! Lá fora, o dia deve estar lindo! Vou abrir a gruta e voltar à claridade. Vou ver o azul do céu. Vou sentir o calor do sol. Vou caminhar pelo verde do prado. Vou recolher alimentos.


Pondo mãos à obra, cheia de energia e felicidade, a jovem formiga , esgravatando, esgravatando, abriu num ápice a porta da gruta, que limpou cuidadosamente. Já fora, deliciou-se, por breves instantes, com o calor e a doce claridade do tempo primaveril. Muito feliz, regressou à gruta, dirigindo-se ao caminho em que guardara, no Verão anterior, o melhor naco de alimento que conseguira recolher. Apertou-o contra si e reconduziu-o, com muito esforço, gruta acima, até perto da cigarra. Aí chegada, a jovem formiga exclamou:

- Vizinha, como passou todo este tempo? Obrigada por me ter despertado para este dia tão lindo. Se não fosse o seu canto, ainda agora estaria, sonolenta, no escuro e frio da gruta.
Ao ouvir a voz amiga e meiga da jovem formiga, a cigarra, jovem também, parou de cantar, desceu, ágil e apressada do seu ramo e abraçou, longamente, a vizinha que, desde os primeiros frios do Outono, não via. Conversaram por longos minutos, riram alegremente e já quando se preparava para partir para as lonjuras do prado, a jovem formiga disse, cheia de alegria:
- Amiga, aqui deixo-lhe alimento para que possa continuar a cantar e a tornar mais alegres e felizes estes dias quentes, tão azuis, tão lindos.

O sol ia já mais alto quando, apressada e sempre feliz, a jovem formiga regressou, carregada, com os alimentos que colhera, à sua gruta. A formiga mãe levantara-se e tinha já varrido e arrumado quase todos os cantos da gruta. Ao avistar a jovem formiga, a mãe disse bruscamente:
- Onde está o melhor naco de alimento que tínhamos naquele canto?
- Dei-o, minha mãe, à vizinha cigarra, que, esta manhã, com o seu canto, me avisou da chegada do calor primaveril, fazendo-me tão alegre e tão feliz.
Fora de si, falando alto, quase aos gritos, a formiga mãe advertiu:
- A cigarra se quiser comer que pare de cantar e vá arranjar alimentos. Não temos de dar de comer a quem passa a vida a cantar. Não voltarei a avisar-te! Se repetires o que fizeste hoje, castigar-te-ei duramente. Não terei dó nem piedade.
Escorrendo-lhe copiosas, já as lágrimas pelo rosto, a jovem formiga, com voz trémula, soluçada, mas suave, disse:
- Sabia que a avó dizia isso, mas, desde então, passou tanto tempo! Acreditava que a mãe pensasse de outro modo! A cigarra canta, faz o que deve, faz o que melhor sabe fazer, alegra o Mundo e os outros seres. Foi esse o papel que lhe coube no acto da Criação. E por entre soluços, continuou:
- Mãe, já pensou na tristeza que seria o Mundo sem o canto mavioso dos passatinhos, sem a beleza inigualável das flores na Primavera, sem a poesia, a música e toda a arte dos humanos?! Mãe, deixe-me, pelo bem dela é certo, mas também pelo nosso bem, pela nossa felicidade, ajudar a cigarra a cantar!

A formiga mãe que se acalmara com as palavras suaves da filha e a ouvira em silêncio, permaneceu imóvel, doce e comovidamente, por alguns instantes.
Seguidamente, sem dizer palavra, dirigiu-se-lhe, abraçou-se, enxugou-lhe as lágrimas, afagou-a e beijou-a carinhosamente.
Daí em diante, naquele prado, em tempo quente, o canto alegre da cigarra nunca mais deixaria de ouvir-se.

Hélder Olavo






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